domingo, 23 de maio de 2010

A sexta-feira 13 que abalou Alagoas


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A sexta-feira 13 que abalou Alagoas

Em 1957, votação do impeachment do governador Muniz Falcão transformou a Assembleia em praça de guerra

Fábio Costa
Jornalista

No início da tarde do dia 13 de setembro de 1957, uma sexta-feira, um grupo de deputados chegou ao prédio da Assembleia Legislativa de Alagoas com uma peça de vestuário muito pouco adequada ao clima da cidade nessa época do ano. Num calor de 38º, os parlamentares estavam usando pesadas capas de chuva, sob as quais tentavam ocultar metralhadoras. Mal entraram no plenário, sem dizer uma palavra, abriram fogo a esmo, provocando a reação de deputados que já estavam entrincheirados no local. O intenso tiroteio durou cerca de 40 minutos e deixou um deputado morto e várias pessoas feridas, entre elas um jornalista carioca e um servidor da casa. O motivo do bangue-bangue: a votação do pedido de impeachment do governador Sebastião Marinho Muniz Falcão.
Dos 35 deputados estaduais, 22 estavam contra o governador. No dia da votação do impeachment, o próprio Muniz Falcão teria pedido que sua bancada não comparecesse à sessão, entretanto o deputado Humberto Mendes (PTN), seu sogro e líder do governo, discordava dessa posição.
Segundo relato de jornais da época, Mendes e os deputados Claudionor Lima e Abraão Moura decidiram ir à Assembleia dispostos a “matar ou morrer” e não atenderem nem mesmo aos apelos do arcebispo de Maceió, D. Adelmo Machado, para que fossem desarmados. Portando metralhadoras, os três rumaram para a Praça D. Pedro II e, agitados, condenavam os golpistas, sob aplausos da multidão que se aglomerava no local em apoio ao governador.
Os deputados oposicionistas também estavam preparados para o confronto. O boato que corria na cidade era que Humberto Mendes havia encomendado 22 caixões para o enterro coletivo da bancada. Por precaução, foram montadas barricadas com sacos de areia para proteger a Mesa Diretora.
O jornalista carioca Márcio Moreira Alves, enviado a Alagoas como correspondente do jornal Correio da Manhã para cobrir a crise política, relatou assim o que aconteceu naquele dia:

Cheguei às 6 da manhã de hoje, acompanhando o presidente da UDN. Imediatamente saímos a tomar contato com o ambiente político de Maceió, onde se vivia momentos de expectativa. Reuniões se sucederam entre os líderes udenistas na casa do deputado Mário Guimarães, presidente da UDN local. O Palácio do Governo estava vazio de povo e cheio de homens armados. O governador movimentou a cidade durante toda a manhã. A partir do meio dia passou a receber em Palácio. Às 15 horas a Polícia Estadual formou em frente ao edifício da Assembleia. Os deputados da oposição se encontravam no recinto. Às 15,10 horas, deputados situacionistas liderados pelo deputado Claudionor Lima, subiram a escadaria vestidos de capas, sob as quais portavam metralhadoras. Penetraram imediatamente no recinto. Nenhuma palavra chegou a ser trocada. Os deputados da situação abriram fogo imediatamente a esmo. Vários feridos. Impossível dizer número, pois figuro entre eles. De relance vi um deputado de terno escuro, de óculos, empunhando metralhadora sob a capa, que me afirmaram ser Claudionor Lima. Vi o fogo da metralhadora, senti dor na perna e caí. Durante uma hora, juntamente com outros 4 feridos, abriguei-me atrás de 3 sacos de areia destinados a proteger a taquigrafia. Esperei socorro. As ambulâncias tiveram dificuldades em atravessar o cerca de cangaceiros, que ameaçavam o corpo médico com metralhadoras. Removido para o Pronto Socorro, foi diagnosticada fratura do fêmur. Meu estado geral bom. Reportagem encerrada. Marcio Alves”.

Antes de extrair a bala, Moreira Alves fez questão de ditar a matéria, que o médico que o atendeu no Pronto-Socorro pacientemente anotou. O texto foi enviado por telegrama ao Correio da Manhã, que o transcreveu na primeira página da edição do dia 14 de setembro de 1957, com a seguinte manchete:
“DISSOLVIDA À BALA A ASSEMBLEIA DE ALAGOAS – DEPUTADOS GOVERNISTAS, PORTANDO METRALHADORAS, ABRIRAM FOGO PARA IMPEDIR A DISCUSSÃO DO PARECER FAVORÁVEL À DECRETAÇÃO DO IMPEACHMENT DO GOVERNADOR MUNIZ FALCÃO – RELATO IMPRESSIONANTE E DRAMÁTICO DO REPRESENTANTE DO “CORREIO DA MANHÃ, QUE FOI FERIDO DURANTE O TIROTEIO

(As 17 linhas do texto renderam a Moreira Alves o Prêmio Esso de Jornalismo. Onze anos depois, o jornalista seria protagonista de outro episódio marcante da história nacional. Em 1968, como deputado federal, ele fez no plenário da Câmara um discurso considerado ofensivo pelo governo militar, que pediu licença à Câmara para processá-lo. A recusa ao pedido foi o pretexto que os militares queriam para decretar o Ato Institucional nº 5, que mergulhou o Brasil no período mais sombrio da ditadura.)

Um deputado morto, três feridos

Na troca de tiros da Assembleia, morreu o deputado Humberto Mendes, atingido pelas costas. Segundo o jornalista Rubens Jambo, que estava na Assembleia naquele dia, o tiro que matou Mendes saiu da arma do deputado Virgílio Barbosa. Além do jornalista Márcio Moreira Alves, ficaram feridos os deputados Carlos Gomes de Barros, Júlio França e José Afonso e o servidor Jorge Pinto Dâmaso.
Só no final do tiroteio as tropas do Exército intervieram. O edifício, totalmente danificado, foi isolado. O cenário era de guerra: mobiliário quebrado, vidros estilhaçados, vitimas se contorcendo.
A notícia do assassinato de Humberto Mendes causou comoção, e algumas pessoas que ainda estavam na praça tentaram invadir o prédio, mas foram contidas pelos militares. O próprio governador, ao receber a notícia, teria decidido ir armado à Assembleia, mas foi contido por assessores.
Maceió se transformou numa cidade fantasma: sem energia, sem telefone, sem transportes. Nas ruas, apenas soldados do Exército. Os militares ofereceram asilo aos deputados governistas, e o Pronto-Socorro teve a segurança reforçada.
No dia seguinte, sob forte comoção, foi enterrado o deputado Humberto Mendes em sua cidade natal, Palmeira dos Índios. À noite, o presidente Juscelino Kubitschek decretava a intervenção parcial no Estado. Muniz Falcão passou o cargo ao vice, Sezinando Nabuco, e viajou para o Rio de Janeiro, mas retornou ao cargo em 24 de janeiro do ano seguinte, cumprindo o resto de seu mandato até o final.

Muniz Falcão desafiou as elites locais

Até hoje, mais de 50 anos depois, o episódio é considerado um dos mais significativos da história alagoana e ainda suscita discussões sobre a figura de Muniz Falcão e seu governo. Nascido no município pernambucano de Araripina, ele iniciou a carreira política em 1950, quando se elegeu deputado federal. Antes havia ocupado o cargo de delegado regional do Trabalho em Alagoas, o que lhe deu visibilidade, principalmente entre os trabalhadores. Em 1955, Muniz Falcão disputou a eleição para o governo do Estado e derrotou o candidato da situação, Afrânio Lages, que era apoiado pelo governador Arnon de Mello.
Partidários e opositores do governador deram versões diferentes para o processo de impeachment. Para os parlamentares da base de Muniz Falcão, o golpe foi uma reação de grupos oligárquicos ligados ao setor sucroalcooleiro, que não aceitavam a perda do poder político. Os oposicionistas, por sua vez, responsabilizavam o governador pelo alto índice de violência no Estado – cujo ápice havia sido o assassinato, em Arapiraca, do deputado José Marques da Silva (UDN) – e por ameaçar o Poder Legislativo.
Segundo o historiador Douglas Apratto Tenório, em sua obra “A tragédia do populismo – o impeachment de Muniz Falcão”, pela primeira vez, na violenta e tumultuada vida do Estado de Alagoas, “um governo saído das entranhas da massa exercitou com maestria o populismo, ousando confrontar-se com as elites e a aristocracia local”. Apratto afirma que o “munizismo” representou um momento de extraordinário avanço nas lutas sociais de Alagoas.
Entre as várias versões que circulam sobre Muniz e seu tumultuado governo, uma das mais correntes é a de que ele era um homem educado, fino, porém incapaz de coibir os desmandos e as truculências de seus correligionários. Seu governo teria sido marcado pela violência política em grau elevado.
Entretanto, como observa o historiador, a desestabilização do governo Muniz Falcão começara antes mesmo da posse. Segundo Apratto, o bloco oposicionista, que congregava as mais poderosas famílias estaduais, transformou o governo Muniz Falcão numa administração permanentemente acuada, combatida sem tréguas em todas as frentes.
Numa entrevista ao extinto Jornal de Alagoas em 13 de setembro de 1992, o ex-deputado federal e ex-prefeito de Maceió Djalma Falcão, irmão de Muniz, afirmou que o que pesava contra o então governador era o fato de ter enviado para apreciação da Assembleia um projeto de lei que criava a “taxa pró-economia”. Tratava-se de um tributo a ser pago pelos usineiros e pelos produtores de coco, fumo e algodão, cujos recursos seriam aplicados nas áreas de educação, saúde e infraestrutura. “A partir daí, fizeram de tudo para tirar Muniz da administração pública municipal”, afirmou Djalma. “Ele conquistou a simpatia do povo, mas, por outro lado, ganhou vários adversários”.
A taxa pró-economia, instituída em 22 de outubro de 1956, de fato alterou o quadro de forças da Assembleia. O governo, que até então tinha uma bancada favorável de 23 deputados contra 12, passou a ter minoria, com 13 parlamentares em sua base, contra 22 da oposição.
O assassinato do deputado José Marques da Silva, em Arapiraca, foi o pretexto que a oposição usou para iniciar o processo de impeachment. O deputado estadual Oséas Cardoso, líder do Partido Trabalhista Nacionl (PTN), foi o autor da denúncia por crime de responsabilidade.
Ao tomar conhecimento da denúncia, Muniz Falcão entrou com mandado de segurança no Tribunal de Justiça, que concedeu liminar em seu favor, suspendendo o pedido. A liminar foi cassada, e o deputado Teotonio Vilela (UDN), relator do processo, marcou para a sexta-feira 13 de setembro a primeira votação do impeachment, que acabou em tiroteio.
Douglas Apratto conclui que não houve vencedores no episódio, pois todos perderam, principalmente o Estado, cuja imagem de violência foi ainda mais fortalecida. 
A morte de Humberto Mendes, entretanto, parece ter oferecido uma espécie de trégua. Após a breve intervenção federal, Muniz retornaria ao Palácio dos Martírios e governaria o restante do mandato sem a antiga rede de intrigas.
Muniz Falcão seria novamente eleito governador de Alagoas em 1965, mas manobras políticas o impediram de tomar posse, e o Estado sofreu nova intervenção. Ele morreu no dia 14 de junho de 1966, no Recife, aos 51 anos, e foi enterrado em Maceió no dia seguinte. Uma multidão acompanhou o enterro.


Matéria publicada originalmente em O Jornal, edição do dia 13 de setembro de 2007.

7 comentários:

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  2. Muito bom o texto! A "zica" de Alagoas vem de longe...

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  4. Bom artigo agora tá tudo explicado Alagoas ! Palmeira dos Índios foram a muito tempo homenageados algumas dessas figuras célebres. Avenida Muniz Falcão que fica na situado o Colégio Estadual Humberto Mendes.

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  5. Infelizmente, com a morte de Humberto Mendes, o nefasto sindicato do crime, em Alagoas, só fez aumentar. - Os "coronéis" sempre mandaram e desmandaram. - Tanto em Alagoas, quanto em Pernambuco e adjacências. - Por certas cargas d'água, Robson Mendes, outro filho de Humberto Mendes, foi prefeito de Palmeira dos Índios, no início da década de 1960. Robson fez miséria em Palmeira e arredores. Por fim, foi ele assassinado por um dos seus pistoleiros e capangas. - A morte de Robson teria sido urdida pelo fazendeiro José Fernandes Maia Costa (conhecido como Zé Fernandes). Este teria sabido que estava na lista de morrer, por ordens de Robson. Assim, Zé Fernandes mandou chamar o capanga de Robson e perguntado "Quanto você vai ganhar pra me matar?” – O pistoleiro Zé Crispim teria respondido na hora: "Dois mil contos." Ao que Zé Fernandes disse: "Eu lhe dou três mil contos pra você matar o seu patrão." – Então, negócio fechado, Robson Mendes foi morto por Zé Crispim, à meia-noite numa estrada escura e de terra batida. – Mas isso não significa que Alagoas tenha sido pacificada até hoje.

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